09 junho 2006

ESPIRITUALIDADE NAS CELEBRAÇÕES MILITARES

*Ashbell Simonton Rédua
asredua@yahoo.com.br


Falar sobre Espiritualidade nas Celebrações Militares é no mínimo algo suspeito, porque há uma análise dos impactos do exercício religioso nas Organizações Militares. Mas diante da religião como envolvimento pessoal, há uma suspeita forte de ela ser algo muito subjetivo, emotivo, fora do alcance da objetividade militar. No âmbito dos sistemas religiosos, a teologia trata dos assuntos do conteúdo revelado quase com exclusividade, só que ela o faz de uma forma domesticada, adequada para o uso institucional de cada igreja ou denominação. No senso comum, o exercício da religião na vida militar fica restrito ao âmbito pessoal, e tudo o que diz respeito à religião permanece fechado no íntimo da pessoa, intocável para reflexões e críticas, contudo respeitando a confessionalidade da Constituição Brasileira, das garantias individuais.
A espiritualidade enquanto dimensão do ser humano no processo de compreender, julgar e interferir nas Organizações Militares, como tal, ela é um prisma da pessoa para trabalhar as suas experiências, e representa um forte motivador para as suas ações e um referencial para o seu comportamento social-militar.
Falo sobre esta dimensão a partir de uma ampla experiência vivida na caserna dos anos de 1977 a 2005 em várias Organizações Militares do Exército Brasileiro e em diferentes regiões brasileiras, numa ótica militar-pedagógica de possíveis mudanças sociais. Sinto uma redescoberta do interesse pela religiosidade em diversos níveis da caserna, por constatar a sua importância na construção das relações sociais dos militares, mas também pela abertura de alguns segmentos religiosos às reflexões das ciências militares e humanas. Neste início da discussão quero estimular posicionamentos apaixonados e críticos, céticos e desafiadores.

1. Espiritualidade na Caserna como qualidade de vivência da realidade
A espiritualidade se localiza entre as experiências humanas da realidade. É uma qualidade de vivenciar o mundo. Mesmo que experiências sejam algo pessoal e singular na sua expressão, existem aspectos gerais que distinguem este tipo de experiências de outras. O específico da espiritualidade se caracteriza justamente pela forma particular de vivenciar, perceber e significar momentos e espaços. São momentos únicos de festa ou de dor, de felicidade ou de limite. São espaços especiais por proporcionarem às pessoas sensações diferentes da rotina cotidiana: desde a tranqüilidade até o envolvimento das Organizações Militares em ambiente litúrgicos de um sagrado até o vazio do silêncio absoluto imposto pelas diversas missões e desafios enfrentados.
Os momentos e espaços podem ser estimulados por elementos externos – o fato dos militares se encontrarem para festejar ou celebrar, estímulos ambientais das formaturas e paradas, como música ou canto das canções militares, pensamentos e reflexões, palavras poéticas ou sagradas, interpretações de regras e regulamentos – mas o que torna os momentos e espaços espirituais é o significado que eles recebem pela percepção humana. A própria experiência da pessoa os faz celebridades, os heróis militares são celebridades que são sempre relembrados como referenciais de vida. Espiritual não é uma característica objetiva, mas os militares descobrem em momentos e espaços celebrativos uma dimensão essencial da sua existência.
O espiritual depende do clima naquele momento e naquele lugar, como os militares se sentem, se relacionam entre si, se manifestam e percebem a si mesmos e o ambiente. A vida militar se apresenta, neste instante, como algo íntegro e completo, sem problemas, exclusões, desrespeitos e preocupações.
Algo assim é marcante para as pessoas como indivíduos ou como grupo. Momentos e espaços espirituais são chaves para a compreensão da própria existência na sua dimensão cognitiva e emotiva. Sempre são relembrados silenciosamente quando ocorreram apenas no íntimo de uma pessoa, ou abertamente quando partilhados com outras pessoas.
Em certo sentido, pode-se dizer que a vida militar gira em torno da festa, move-se no sentido da celebração. Nós lutamos de sol em sol para conseguir aquilo que dê alimento e sentido à vida e que, portanto, mereça ser festejado jubilosamente em companhia de nossos heróis e entes queridos: trabalho, amor, alimento, lar, saúde, liberdade, paz, tempo para descansar, brincar e desfrutar da amizade gratuita. Lutamos constantemente para encontrar motivos, tempo, espaço e outros recursos para poder celebrar a vida sem medo nem culpa; para poder festejar o bom da vida sem causar sofrimento à vida dos outros.
Podemos afirmar, então, que a espiritualidade nas Celebrações Militares se manifesta em experiências intimamente ligada à busca de sentido na vida. Esta busca pode ser caracterizada por duas tendências contraditórias e complementares: a busca por segurança e a busca por felicidade. A primeira fundamenta atitudes mais conservadoras e contidas, querendo manter, controlar ou aprofundar um estado de estabilidade na vida (regulamentos e as leis militares). A segunda tendência motiva conquistas prometedoras do novo, arrisca-se com algo desconhecido, estimula experiências diferentes e expõe-se ao segurar a vida, vivê-la e conquistá-la, ao mesmo tempo; procura instâncias de segurança e caminhos para a felicidade.

2. A Espiritualidade nas Celebrações Vida Militar como limites da vida
A Espiritualidade nas Celebrações Vida Militar nos leva aos limites da vida. É uma forma de confronto com abismos, com o desespero, com o medo, com a exclusão, mas também com o novo, com aquilo que ultrapassa esta mesma restrição e imposição.
O limite é o tema central dos momentos e dos espaços, mesmo nem sempre sendo manifestado de maneira explícita. O limite é o ponto de partida para trabalhar, pensar e fazer experiências vivenciais nas celebrações da vida militar.
Os limites são múltiplos. O limite da vida social: as ameaças da exclusão, das promoções, dos soldos, da violência cotidiana e da não-cidadania, experiências e indignações. O limite do dia-a-dia: o imprevisto, o impossível e o improvável, conquistas transformadoras e desastres repentinos, rupturas e novidades inesperadas. O limite da própria existência: a vida em risco, o rompimento dos laços existenciais de vida, a perda e a saudade de algo que fazia parte de nós.
Os limites são lugares de confronto e de decisão. No quartel, a vida acontece em sua normalidade. No meio das atividades militares, o ser humano sente-se seguro e estável. A postura é de afirmação e despreocupação. Oposto ao quartel, a situação do limite desafia para mudar e transformar. As ameaças colocam em risco a própria vida e levantam questionamentos, dúvidas, necessidades do novo. Enquanto o lugar do quartel tende a estar preso à normalidade da rotina cotidiana, o limite enxerga a realidade a partir dos porquês e dos para quês, vai além das aparências da rotina e reivindica respostas consistentes para a vida.
O limite é um lugar frutífero para pensar e questionar as coisas, para enxergar o diferente. Com isso, o limite também é a possibilidade de encontro com algo novo. A libertação das amarras da normalidade estimula a busca para além dos limites e abre a vista para indícios escondidos e desvalorizados de vida, para possibilidades de mudar radicalmente o referencial e, com isso, os fundamentos da nossa vida cristã das relações sociais militares. Dissemos que o limite é o lugar de confronto e de decisão, o lugar da ruptura e da possibilidade do novo. Não dissemos, porém, qual é a decisão, contudo a experiência cristã do militar direciona e redireciona a tomar decisões coerentes com os princípios e padrões ensinados nas Escrituras Sagradas (Bíblia).
A Espiritualidade nas Celebrações Vida Militar oferece espaços e momentos que se caracterizam por destacar-se da rotina, possibilitando, inicialmente, a ruptura e o diferente. Culto para os cristãos respeitando a singularidade dos credos: católicos, protestantes/evangélicos. Sem proselitismo, a partir disso, o militar cristão e o grupo que ele compõe naquele momento começam a ultrapassar a situação imposta e transcender os referenciais, não negando, porém, a normalidade da interpretação e das relações religiosas com outros militares.

3. Espiritualidade nas Celebrações Militares como construtora de pontes para a vida
Construir uma ponte significa, nesse sentido, superar essa posição social da exclusão generalizada e criar possibilidades de integração e de dignidade. O potencial de mudança da espiritualidade pode ser sistematizado nas seguintes dimensões:

a. Tornar-se sujeito na construção de pontes através dos encontros e desencontros
Não tinha nem a coragem de olhar para fora da caserna, para vida civil além da dimensão militar, reconstruir pontos militares para a vida civil. Eu achava que tudo era contra mim. Hoje, a vida é tão diferente. Aprendi com os outros o que é vida. Aprendi quem sou. Hoje, na reserva e desenvolvendo o Ministério Pastoral na Igreja Presbiteriana do Brasil, também como Conciliador do 1º Juizado Especial Civil, em Niterói, luto e grito por meus direitos.
Mas lá na caserna aconteceu uma acolhida da minha pessoa como militar, uma recepção como gente. Há tempo para escutar o outro e falar de si, quantas vezes escutei pessoas no limite do desespero, e ajudei-as para o retorno a normalidade, isto porque nas Organizações Militares, ao contrário do que se pensa, estimula-se a liberdade de expressar-se, de manifestar-se e de afirmar-se. Pessoas silenciadas pela sua situação de vida começam a se descobrir como alguém, começam a detectar a sua identidade – “eu sou alguém, eu sou singular” (em 1977 não era ninguém, hoje sou alguém). “De repente”, o militar começam a contar a sua vida, reconstruindo a sua própria história. Em muitos casos, forma-se ao mesmo tempo uma coletividade, uma comunidade, um grupo integrado de pessoas. Uma coisa é imprescindível à outra: o militar tem de ser acolhido e estimulado por outros para encontrar a si mesmo numa outra condição – passar de ser objeto, não-ser-ninguém, não-poder-opinar, não-ter-vontades, a ser sujeito, ser aceito, ser ouvido, ser respeitado. Paralelamente, a aproximação como grupo: uma comunidade somente se forma com base em pessoas que a querem e a constituem com identidades, marcando um rosto diversificado, mas unido.
O encontro consigo mesmo e a formação de comunidade não acontecem somente em e graças a celebrações, em momentos e lugares especiais. Pelo contrário, todos os momentos e espaços em que isso acontece se tornam especiais, espirituais por superar limites, por mudar e conquistar o novo. Lá onde há descoberta de si como parte de um coletivo unido acontece espiritualidade.

b. Espiritualidade nas Celebrações Militares como processo de participação (parte e ação) e “comunicação” (comunhão e ação).
Aqui não posso deixar de citar meu último Diretor, Cel Vitor César: “o processo não está funcionando”, claro que isto me questionava, mais tarde entendi que processo é participação, isto é, parte e ação, duas dimensões do cotidiano militar (ele é parte e ação ao mesmo tempo de todo o processo). Juntos, cada um com sua parte, fizemos as celebrações. De repente, no meio da celebração, todos se juntaram e surgiu uma festa, sabe. Em todos passava a certeza que podemos fazer que as coisas mudem. Há uma enorme importância para a reconstrução da vida na participação coletiva no cotidiano militar. A participação constitui uma pressuposição, por um lado, da sensação de um projeto maior e, paralelamente, do fato de que cada um se percebe como parte deste projeto. Sentir-se parte significa ser incluído e formar um conjunto solidário.
Decisiva para a participação é a qualidade das inter-relações que se estabelece por meio da acolhida e do respeito, da forma como cada um é recebido e valorizado. Ser parte necessita a ativação de sua capacidade singular para assumir uma responsabilidade coletiva. Neste sentido, a pessoa “acorda” para o agir como sujeito, saindo de uma postura reativa e acomodada.
Mas a participação também representa uma qualidade diferente de estímulo para agir, na medida em que supera a postura da competição como indivíduo isolado no horizonte de um conjunto maior.
Um outro elemento decisivo encontra-se na presença de um projeto comum. Este deve ser construído e reconstruído a cada instante por ser o norte, a orientação básica e, ao mesmo tempo, o “cimento” da participação, aquilo que une as pessoas. Um pré-requisito para um projeto comum é o sucesso da comunicação: uma linguagem que todos considerem a sua, que seja autêntica e que ocorra num espaço de diálogo que está aberto ao ouvir e falar.
Em relação à participação e comunicação, as celebrações demonstram diferenças significativas. Enquanto liturgias institucionalizadas ensinam com rituais fechados uma obediência silenciada, momentos e espaços espontâneos e abertos tendem a estimular a construção de sua espiritualidade a partir das contribuições dos presentes.

c. Um novo referencial – libertação para a vida
Eu mudei. De repente, abriram-se os meus olhos. Uma mudança de postura na vida requer uma mudança de valores e de referenciais; requer a ruptura da lógica ideológica do limite que se impôs, ocupando o pensar das pessoas. Libertação para a vida significa, principalmente, a ruptura com os “preconceitos” da normalidade e da moral estabelecida que responsabiliza cada indivíduo por seu lugar social. Promessas superficiais mobilizam pontualmente as pessoas; mudanças de postura, no entanto, ocorrem lentamente a partir de descobertas de “conteúdos da vida”, princípios constituintes do ser humano (sentido, dignidade, felicidade, como fruto de reflexões em que cada pessoa participa e tira as suas próprias conclusões.
As fontes que estimulam estas reflexões precisam de autoridade e integridade a fim de passar confiança num mundo em que a maioria não acredita em mais nada e ninguém. A Escritura Sagrada (Bíblia), representam este tipo de fontes de autoridade e integridade; as suas mensagens são capazes de trazer uma nova visão para o viver e um novo horizonte para o agir.
Estudos desta fonte confrontam com mensagens de valorização da vida, da pessoa e da justiça e estimulam para pensar a vida de uma forma mais ampla, com certeza aqui se estabelece a diferença de suportar as adversidades e buscar a felicidade na caserna.
O potencial de celebrações espirituais consiste em alimentar constantemente os sonhos num horizonte utópico. São pequenas conquistas relembradas, refletidas e valorizadas que fazem nascer a esperança, um acreditar e apostar que o impossível é possível. São as partilhas e as experiências de solidariedade e dignidade em momentos de comunhão que antecipam a utopia e a inserem na vida presente.

Conclusão
A Espiritualidade nas Celebrações Militares deve ser considerada na construção de militares críticos com autenticidade e autonomia, assim como na constituição relacionamentos com base em relações mais respeitosas e justas de acolhida e solidariedade coletiva. Não há receitas nas reflexões sobre espiritualidade, e respostas claras são suspeitas de restrições dogmáticas.
A partir de momentos e espaços, sejam eles estimulados ou expressões espontâneas, abrem-se caminhos do novo, criados pelos próprios participantes.
Cabe a nós, oficiais e praças, lideranças preocupadas com um mundo melhor, percebermos o potencial, aprendermos com o diferente e cultivarmos as raízes da insistência do novo.
Que Deus vos abençoe!
Soli Deo Glória
-----------------
DADOS BIBLIOGRÁFICOS
OESSELMANN, Dirk Jürgen. Espiritualidade e Mudança Social. Porto Alegre: Revista de Estudos Teológicos, 42(3):5-16, 2002.
(Adaptado e modificado)
DADOS BIBLIOGRÁFICOS ORIGINÁRIOS
ALVES, Rubem. Tempus fugit; carpe diem. Tempo e Presença, Rio de Janeiro: CEDI, n. 275, p. 22-25, 1994.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
MADURO, Otto. Mapas para a festa: reflexões latino-americanas sobre a crise e o conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1994.
OESSELMANN, Dirk Jürgen. Spiritualität und soziale Veränderung. Gütersloh:Gütersloher Verlagshaus, 1999
________________________________________________
* Ashbell Simonton Rédua, ST R/1 EB, Pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil e vice-presidente da Aliança Protestante Nacional e membro da Comissão Nacional de Evangelização da Igreja Presbiteriana do Brasill

Homenagem: Dedicado aos Militares da Policlínica Militar de Niterói, que abundantemente me valorizou e fizeram parte de decisões importantes na minha vida.
Escrito especialmente para o site: O Militar Cristão -
http://www.militar.cristao.nom.br/

Nenhum comentário: